Em julgamento de recurso especial repetitivo (Tema 996), a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou nessa quarta-feira (11), por unanimidade, quatro teses relativas aos contratos de compra de imóvel na planta no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida, especificamente para os beneficiários das faixas de renda 1,5; 2 e 3.
As teses – que consolidam entendimentos já firmados pelo STJ em julgamentos anteriores e, segundo o relator do recurso, ministro Marco Aurélio Bellizze, terão eficácia vinculante em todo o território nacional – são as seguintes:
1) Na aquisição de unidades autônomas em construção, o contrato deverá estabelecer, de forma clara, expressa e inteligível, o prazo certo para a entrega do imóvel, o qual não poderá estar vinculado à concessão do financiamento, ou a nenhum outro negócio jurídico, exceto o acréscimo do prazo de tolerância.
2) No caso de descumprimento do prazo para a entrega do imóvel, incluído o período de tolerância, o prejuízo do comprador é presumido, consistente na injusta privação do uso do bem, a ensejar o pagamento de indenização, na forma de aluguel mensal, com termo final na data da disponibilização da posse direta ao adquirente da unidade autônoma.
3) É ilícita a cobrança de juros de obra, ou outro encargo equivalente, após o prazo ajustado no contrato para a entrega das chaves da unidade autônoma, incluído o período de tolerância.
4) O descumprimento do prazo de entrega do imóvel, computado o período de tolerância, faz cessar a incidência de correção monetária sobre o saldo devedor com base em indexador setorial, que reflete o custo da construção civil, o qual deverá ser substituído pelo IPCA, salvo quando este último for mais gravoso ao consumidor.
No julgamento do recurso repetitivo, a Segunda Seção também entendeu que a aplicação das teses deveria ser limitada a imóveis residenciais, tendo em vista que a aquisição de imóvel comercial não foi contemplada pelo Minha Casa, Minha Vida, conforme fixado pela Lei 11.977/2009.
No mesmo sentido, o colegiado concluiu não ser relevante fazer distinção entre o imóvel adquirido para moradia e o bem comprado a título de investimento, uma vez que, nos negócios regidos pelo programa governamental, só é permitida a aquisição com a finalidade de residência própria.
Apesar de não ter havido determinação de suspensão da tramitação de processos nas instâncias ordinárias, de acordo com o Banco Nacional de Demandas Repetitivas do Conselho Nacional de Justiça, pelo menos oito mil ações com temas semelhantes tramitavam nos tribunais de todo o país e agora poderão ser decididas com base no precedente qualificado firmado pelo STJ.
Faixas de renda
O recurso especial julgado pela Segunda Seção foi interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo fixado em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR). Conforme lembrou o ministro Marco Aurélio Bellizze, nos termos do artigo 256-H do Regimento Interno do STJ, os recursos especiais contra acórdãos que julguem o mérito de IRDR devem ser processados como representativos de controvérsia.
O ministro também ressaltou que o programa Minha Casa, Minha Vida foi instituído pela Lei 11.977/2009 com o objetivo de criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias de baixa e média renda, em observância ao direito fundamental à moradia digna.
O programa, realçou o relator, estabelece diferentes faixas de renda para acesso aos benefícios. Na faixa 1 estão famílias com renda bruta de até R$ 1,8 mil – ou, se comprovarem situação de vulnerabilidade social, até R$ 3,6 mil – e, para este grupo, o programa se assemelha muito mais a um benefício social com contrapartida do que propriamente a um contrato de promessa de compra e venda de imóvel.
Por outro lado, no caso das faixas 1,5, 2 e 3 do Minha Casa, Minha Vida – em que a renda bruta familiar chega a R$ 7 mil –, embora exista a possibilidade de o beneficiário obter subvenção econômica por meio de recursos como o FGTS, há efetivamente a realização de financiamento imobiliário, com incidência de juros (ainda que reduzidos), formação de saldo devedor, contratação de seguro e pagamento de comissão de corretagem, entre outros.
“Cabe ressaltar que, por toda a situação peculiar que envolve a faixa 1 de renda, inclusive por se tratar de beneficiário que, pelos motivos expostos, não está submetido às regras consumeristas, as teses fixadas no julgamento destes recursos serão aplicadas apenas aos contratos firmados para as faixas de renda 1,5, 2 e 3”, explicou o relator.
Prazo certo
Em relação à primeira tese, sobre a fixação de prazo certo nos contratos de aquisição associativa de unidades residenciais, Bellizze apontou que a matéria relativa ao prazo para a formação do grupo de adquirentes, bem como para obtenção do financiamento, não está regulada especificamente por nenhuma das leis aplicáveis ao contrato de compra e venda de imóvel no âmbito do Minha Casa, Minha Vida. Estão entre esses diplomas legais a Lei 11.977/2009, a Lei 4.591/1964, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Mesmo assim, Bellizze disse que o fato de o contrato ser regido pelas regras de crédito associativo e ser voltado a famílias de média e baixa renda não pode ser utilizado como argumento para justificar a estipulação de prazo aberto à conclusão da obra, tendo em vista que os negócios disciplinados no programa não retiram do vendedor o ônus do risco da atividade econômica, além de serem lucrativos para as empresas envolvidas – desde 2009, o programa já permitiu o investimento de valores que ultrapassam R$ 270 bilhões.
Segundo Bellizze, tratando-se de contratos que regulam as relações de consumo, o aderente só se vincula às disposições neles inseridas se lhe for dada a oportunidade de conhecimento prévio de seu conteúdo, condição que se aplica aos contratos de compra e venda de imóvel. Nesse sentido, o artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor considera nulo de pleno direito, entre outras, a cláusula contratual que coloque o consumidor em situação de desvantagem exagerada, como aquela que restringe direitos ou obrigações fundamentais à natureza do contrato.
Para o ministro, de nada adiantaria a estipulação de prazo certo e expresso “se ele for fixado de maneira apenas estimativa e condicional, ficando vinculado, ainda, a um evento futuro, no caso, à data de obtenção do financiamento pelo adquirente ou àquela que for determinada pelo agente financeiro no referido contrato. Isso acaba por atribuir à incorporadora o direito de postergar a entrega da obra por prazo excessivamente longo e oneroso para o comprador, a ponto de afastar, inclusive, o próprio risco da atividade, que pertence à empresa”.
Prejuízo presumido
No tocante à segunda tese, relativa ao descumprimento do prazo para a entrega do imóvel, Marco Aurélio Bellizze destacou precedentes do STJ no sentido de que, no âmbito do financiamento pelo Sistema Financeiro da Habitação, é cabível a fixação de lucros cessantes em razão do descumprimento do prazo para a entrega do bem, incidindo a presunção de prejuízo do promitente comprador.
De acordo com o relator, o fato de o imóvel não entregue ter sido adquirido sob a disciplina do programa Minha Casa, Minha Vida não afasta a presunção de prejuízo, pois, conforme jurisprudência do STJ, a condenação da parte vendedora por lucros cessantes independe inclusive da demonstração da finalidade negocial da transação.
“No caso, a obrigação de indenizar decorre do prejuízo, que se presume ter o titular sofrido, por não ter se apossado do imóvel na data aprazada. É evidente que a previsão contratual criou a justa expectativa de que o adquirente pudesse usufruir o bem, daí que, se não o faz por razões oponíveis à incorporadora, surge o dever de reparar, independentemente da realização de prova específica do prejuízo”, afirmou.
Juros de obra
Sobre a questão dos chamados “juros de obra”, o relator citou precedentes no sentido de que não se considera abusiva cláusula contratual que preveja a cobrança de juros antes da entrega das chaves. Segundo Bellizze, não havendo distinção significativa entre as regras do SFH e do Minha Casa, Minha Vida para as faixas de renda 1,5, 2 e 3, também não haveria motivo para se adotar tratamento diferenciado em relação ao reconhecimento da legalidade da cobrança de juros durante a evolução da obra.
“Com efeito, na disciplina do PMCMV, sob a modalidade do crédito associativo, é legal a incidência de juros de obra durante o período de construção do imóvel, cessando a sua aplicação com a entrega da unidade, quando terá início a fase de amortização do saldo devedor do financiamento contratado com o agente financeiro.”
Como consequência, ressaltou o relator, ultrapassado o prazo para a conclusão do empreendimento, não podem ser cobrados encargos para incidir no período da construção, já que o mutuário não pode ser responsabilizado pela remuneração do capital empregado na obra quando houver atraso por culpa imputável apenas à vendedora, sob pena de violação do Código Civil e do CDC.
Correção monetária
A última tese fixada pela Segunda Seção diz respeito à correção monetária do saldo devedor no caso de atraso na entrega do imóvel. Segundo o relator, as turmas de direito privado do STJ firmaram entendimento de que, embora o descumprimento do prazo de entrega não constitua causa de suspensão da incidência de correção monetária sobre o saldo devedor, tal fato permite a substituição do indexador setorial – em regra o Índice Nacional de Custo de Construção (INCC) pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA), salvo quando o primeiro for menor.
“Essa solução mostra-se adequada ao reequilíbrio da relação contratual, nos casos de atraso na conclusão da obra, não devendo ser implementada a substituição do indexador específico do saldo devedor pelo geral, vale insistir, apenas quando o índice previsto contratualmente for mais favorável ao consumidor, avaliação que se dará com o transcurso da data limite estipulada no contrato para a entrega da unidade, incluindo-se eventual prazo de tolerância”, concluiu o ministro.
Fonte: AASP